Sunday, October 21, 2007

Um prisma de liberdade

O lugar era escuro e abafado. Um cheiro de naftalina imperava em todos os cantos. Já havia se acostumado com o silêncio e com a escuridão. Uma vez ou outra conversava com seus companheiros. Mas, na realidade, não tinha muito o que falar. Eles saíam e voltavam alegres. Viam o mundo lá fora e ele ficava, esquecido por ela. Como desejava ver o mundo a sua volta! Mas era seu destino ficar naquele armário. Cada vez mais triste, pesado e cansado.

Um dia comum, na mesmice de sempre, sentiu de repente que algo mudava na casa. Barulhos. Foi quando ela abriu o armário e colocou aquele antigo vestido dentro de um saco. Já não o usava há um bom tempo, havia engordado deveras depois do terceiro filho e aquele já não a servia mais. Decidiu levar as velhas roupas a uma loja da Cruz Vermelha. Lá alguém faria bom uso daquele que um dia trouxe tantas noites românticas e alegres a ela.

O vestido não entendia o que estava acontecendo, e tinha a sensacao de que sua vida mudaria. Poderia ir para um lixão. Ser reciclado, estilhacado e retornar em forma de almofada. Ou até uma toalha de mesa. Tinha medo.

Retiram-no do saco direto para um cabide. Estava lá, o vestido de novo, pendurado em um cabide no meio de outros vestidos. Mas agora não era mais um ármario naftalizado e escuro, e sim, um lugar amplo com gente em volta. Logo uma velha e amável senhora se deu conta do belo vestido que tinham adquirido a pouco. Florido e cheio de cores, necessitava de alguns pequenos reparos.

Assim o vestido sentiu-se alegre por despertar a atencao e cuidados de uma mão castigada pelo tempo, porém hábil e cuidadosa. Um alívio.

Olhando a sua volta, velhos casacos e outros vestidos aguardavam a sua vez. Alguns estavam lá haviam muitos anos, esperando que uma jovem, louca por vintage os comprasse. Outros já não possuiam tamanha esperanca. Outros ainda esperavam ser úteis em algum lugar distante do terceiro mundo. Esquentando o corpo de uma crianca faminta e carente.


A jaqueta de couro era uma que insistia em dizer que não havia esperanca. Todos iriam ter o mesmo destino e que o vestido não deveria sentir-se especial apenas por ser mais alegre e colorido. ”As pessoas não irão te escolher por ser colorido, pois você não passa de uma velha roupa esquecida”, dizia o casaco.


O vestido sentia-se muito triste ouvindo todas aquelas afirmacões e comecava a acreditar, após tanto tempo pendurado naquele cabide, sem que ninguém o tocasse.


Com a chegada do verão, a loja estava quente e lá fora as pessoas andavam nas ruas, alegres e sorridentes. Entra, subitamente, uma mulher alta e descabelada na loja. Cabelos ruivos e desgrenhados e um imenso óculos de sol. Sorria para todos. Veio diretamente em direcão ao vestido. O pegou com tamanha alegria, como se o estivesse procurando por anos.


”Òoooo finalmente te encontrei, ficarás perfeito em mim!”, dizia a espevitada mulher.

Experimentou o vestido, via-se que estava ligeiramente justo. O vestido foi invadido pela felicidade daquela maluca. O casaco olhava-o agora com despeito e descrente. Todas as outras roupas sorriam baixinho, como se vislumbrassem um futuro melhor.
A mulher colocou o vestido de volta. Já não tão contente, pois o vestido não caía tão bem em seu corpo rotundo.


O vestido ainda tinha esperancas de encontrar o enchimento perfeito para seu tecido macio e colorido. Assim os dias vão passando. Várias mulheres param e experimentam o belo vestido. De todos os tipos, tamanhos e idades, um verdadeiro caleidoscópio feminino, até mesmo uma esguia Drag Queen chega a prová-lo. Ele comeca a perceber que esta situacão é muito mais agradável do que estar enfurnado em um armário escuro. Lá, naquela loja, ele fez boas amizades e ouviu estórias tristes e engracadas. Sentia-se vivo. E uma felicidade imensa com essa tremenda movimentacao de pessoas. Agora já näo importa mais encontrar a dona certa. O momento é o que importa.


A jaqueta, com todo o seu pessimismo, acaba encontrando seu dono. Um punk da mais longíngua periferia, que feliz com sua aquisicão, comemora isso pintando a jaqueta e colocando tachinhas por todos os lados. Constam nos autos que a jaqueta continua reclamando de sua miserável condicão. E o vestido , rezando para que ninguém o compre, preza e comemora sua liberdade.

Tuesday, February 13, 2007

À sombra do Baobá*

*Estória escrita a 4 mãos com arath_8.

Era uma vez um bravo pé, pronto para enfrentar as agruras do mundo. Até porque um pé é capaz de regenerar-se. Mas como o mundo é muito duro, uma ajuda é sempre bem vinda. Um belo dia, este pé encontrou uma bela bota. Era preta, feita de couro de vaca.
Após uma vida àrdua dando leite e alimentando outros, a bota aceita sua nova condicão. Assim é a vida, um ciclo termina para iniciar um novo.
O pé e a bota se tornaram bons amigos, onde um protegia o outro, dando assim um significado, uma razäo por estarem juntos.
Todavia, como acontece na maioria dos relacionamentos, algumas surpresas, e algumas decepcões, alegrias e sofrimentos, como conto a seguir.
O pé era protegido do calor, da poeira e do vento, mas foi isolado do sol e do ar fresco.
O pé era um bom camarada, mas… fedia um pouquinho. A bota o ajudou e recebeu em troca um mal cheiro como recompensa. E algumas recompensas são difíceis de se ver livre.
A bota por sua vez, estava usada e suja, já não era tão confortável. Apesar do pé adorar suas conversas, agora precisava de um novo abrigo.
Um dia, o pé entrou em um carro, juntamente com a bota, em uma longa viagem. Assim como o homem usa e abusa da natureza, não pode controlá-la.
O carro rodava por aquela estreita e empoeirada estrada no meio da savana, quando o pé pediu arrego, necessitava de um pouco de ar fresco. A bota poderia também descansar um pouco, ou pelo menos foi o que ela pensou. De fato, constam nos autos, que na verdade o mau cheiro vinha da bota.
Num ato momentâneo, foi decidido que era hora da bota ser afastada de seu cargo. E ali mesmo, em meio a selva, depositaram a bota no bagageiro da pickup. Ali, a bota sentia-se sozinha. O pé mantinha-se em silêncio, enquanto bocas e narizes sussurravam fofocas a respeito da coitada: - Você sentiu o cheiro daquela bota? Está fedida demais! Não presta para nada!
A estrada era esburacada e cheia de calombos, o carro saltava em cada buraco e a pobre bota não tinha como se segurar. Foi quando, devido às raízes de um imenso baobá, o carro passou por um tremendo calombo, jogando a bota para fora da pickup.
A bota encontrava-se agora só, no meio da savana africana, imaginando o porque de ser tratada daquela maneira.
Ela olha para os lados e só vê poeira, algum verde. Era quente. De tanta tristeza, a bota não percebe que ela estava perto de uma enorme árvore. Uma árvore tão grande que enxergava-se a léguas de distância.
Esta sábia árvore – um baobá - comeca a conversar com a triste bota. Se tornam grande amigos. Passam horas a fio contando segredos e estórias. Passado um bom tempo, de tanto conversarem comecam a inventar novas estórias. E assim se divertem.
Há alguns quilometros dali, um leão espreguicava-se.
A vida de um leão não é nada fácil. Já vem ao mundo como príncipes das selvas. Em uma família a que todos temem e respeitam. Protegidos e alimentados pelas fêmeas. O leão cresce e, se tiver sorte o bastante, sobreviverá. Logo é abandonado pelas femeas, vivendo uma vida solitária. Estava esse leão tranquilo e solitário a espreita de algumas zebras, quando seu olfato capta um cheiro diferente. A bota exalava o cheiro de chulé e de couro de vaca que despertaram o faro do leão. Além do faro, o leão estava curioso, pois nao conhecia esse cheiro.
O leão se aproxima da bota. O baobá conhecia o leão há tempos. Sempre dava de bom grado sua sombra, aquele nobre rei sem coroa. Foi assim que o baobá disse ao leão que a bota nao era comida.
Depois de tanto viver, o leão aprendeu que a pressa não leva a lugar algum e nesse momento uma imensa tristeza tomou conta de seu coracão, pois percebeu, no silêncio de sua solidão, que toda sua sabedoria de nada servia, pois não tinha com quem compartilhar as licões que a vida lhe ensinou.
Assim ele decidiu que as zebras podiam esperar um pouco mais, e controlando sua fome, comecou a contemplar a bota. A bota por sua vez tinha interessante estórias para contar. Coisas que o leão nunca ouviu falar. Ele era sábio, mas sua sabedoria limitava-se as savanas. A bota falava de ruas, estradas pavimentadas, carros e elevadores. E o leão comecou a gostar das suas estórias. Sentiu pena da vida ardua que a bota tivera, e com isso empurrou-a um pouco mais a sombra do Baobá.
Ele estava imerso nos contos da bota, e com isso se iludiu, dizendo que a fome não é nada mais do que algo para se ignorar.
Com o tempo o leão sabia que estava muito fraco para caçar, e só queria ouvir as estórias da bota.
Agora, quando passa-se pela estrada de onde vê-se o velho Baobá, ali encontra-se um leão, em seu sono profundo. Pode-se ver uma bota chorando, pois o leão está lá, deitado, de olhos fechados, ouvindo suas estórias, num sono eterno.